Aos Pés do Menino

maio 01, 2016


Mais que aquilo, acabaria.

Por mais que eu soubesse disso, sempre queria mais. Lá no fundo, eu queria, eu desejava muito mais. Eu sabia que ele também, havia momentos, cogitava ultrapassar os nossos limites, mas o que vivíamos era muito claro. Tudo era da única maneira que poderia ser. Mesmo que eu quisesse, mesmo que até ele quisesse, se avançássemos mais, perderíamos tudo o que havíamos conquistado. O elo de nossa relação era justamente um leve e transparente véu que encobria a nudez de nossos corpos.

Eu sempre fui introspectivo. Tenho muitos problemas em lidar com pessoas, em expressar o que eu penso e sinto. Até hoje sou assim. Há algumas exceções, vitais à minha sobrevivência, como a do dia em que nos conhecemos. Eu tinha decidido finalmente aproveitar o sol daquela deserta quinta-feira e ir até um parque da cidade, ler em público um livro e olhar as pessoas vagabundeando como eu. Eu gostava de olhar pessoas, gostava de lugares públicos e verdes, eu acho até que gostava do dia e do sol – ainda gosto, talvez –, embora tivesse sempre muita dificuldade de tomar a simples iniciativa de sair de casa e fazer esse passeio besta. Nesse dia e nesse parque é que o vi. Bermuda, sem camisa e chinelos. Um corpo suave e agressivo. Tinha uma sensualidade violenta, mas sua idade, sua aparente idade lhe dava uma suavidade nos traços que qualquer um se sentiria um criminoso ao desejá-lo. Por isso jamais me disse quantos anos tinha nem eu perguntei, por puro medo de minha ingênua cobiça se tornar um crime ou uma coisinha antiética, mesmo que ele provavelmente não fosse tão jovem assim e eu estivesse longe de ser um velho, ainda mais um velho licencioso.

Aquele menino perambulava sozinho, olhava os outros a jogar bola, vez em quando se fingia atraído por uma menina (o “se fingia” é uma maldade minha), mas não conversava com ninguém nunca. Andava, sentava num banco, na grama, punha-se de pé, bebia aquela coisa morna do bebedouro, chupava faceiro um sorvete, com um dos braços abertos, escorado no muro, aqueles pés já libertos dos chinelos, ele era o dono daquele pedaço. Eu me senti um intruso, porque tudo ali pertencia àquela bermuda, àquele peito nu, mamilos rosados, um tanto largos, um tanto gordinhos, coisa delicada e pueril, pernas peludinhas, pêlos castanhos, pés fortes, grandes, livres, donos daquele chão. Só eu que ainda não era deles.

Eu lia um livro de contos, um deles falava sobre ter um dragão em casa, coisa assim. Falava sobre a força da presença (e da ausência) desse dragão, que chegava para mudar algo em nós, algo que nunca mais seria o mesmo. Justo nesse momento em que pensava sobre esse dragão, sobre o que ele seria, sobre o “estrago” que causava na vida de quem entrasse, foi que ele, o menino, sentou do meu lado, sábio de que ali havia algo que ainda não tinha conquistado. Ele me olhou de lado, espaçoso, pernas abertas, suor invadindo as minhas narinas. Eu não conseguia mais ler. Por mais que direcionasse meus olhos para aquela sopa de letras na minha mão, só enxergava suas pernas, segredos da bermuda, e seus pés, um pouco sujos de sua liberdade no verde, perturbadores. Veias salientes, unhas não muito redondas, não muito quadradas, bem cortadas, dedos fortes, pêlos a caminhar firmes para os tornozelos. Aquele moço poderia ser jovem, mas seus pés eram de homem. Naquele dia eu percebi que os pés são prova incontestável da virilidade.

Eu me apaixonei pelos pés daquele rapaz. O engraçado é que nunca tinha reparado nessa parte do corpo. O que eu faria com pés? Eu não sabia. Mas não consegui resistir... O sol ardia sobre a minha cabeça, meus pensamentos, tudo em mim estava dominado. Meus olhos já não disfarçavam. O manto negro que sufocava minha coragem cedeu um instante a um fino, mas violento raio luminoso, e eu, total idiota como todo apaixonado, vomitei palavras insanas: “Daria a minha vida para tocar esses pés”. Ele riu. Sim, ele não xingou, não me bateu, só riu. Esticou as pernas, exibiu aquelas duas torturantes obscenidades e me disse, sem nenhuma ingenuidade adolescente, que “sim, é o que você tem de dar, a sua vida”.

Eu não quis analisar todas aquelas palavras. Era desejo demais. O menino se insinuava pra mim, me desafiava. Testava a minha vontade, o meu limite. Respirei fundo, me agachei na frente dele e de quem mais percebesse o que acontecia, e o toquei. Ah, meu Deus, eu toquei os seus pés! Eram quentes, pele grossa, grandes, pesados, de um branco bronzeado, sem calos, tão bonitos... Mas foi tudo tão rápido, estávamos em público, o menino se constrangeu e deu um basta à minha delícia. Levantou-se, calçou aqueles felizes chinelos, me pôs de pé, puxando o meu braço. Disse que eu não me preocupasse, que se eu gostava dos seus pés, eu os teria sempre que ele quisesse, e caso eu o obedecesse a partir de então. Eu disse que faria de tudo para reviver aquele momento, dei meu telefone e lhe pedi com muito jeito que me procurasse. Ele disse que me ligaria, sim, mas eu sempre teria de merecer, que se eu fosse bonzinho, poderia tocar seus pés novamente, e... apenas os pés. Eu aceitei: não conseguia mais viver sem eles.

Não sei mais se passaram minutos, dias ou quantos meses, quem sabe anos de agonia à espera de gozar novamente aqueles dois donos do meu prazer. Sei que um dia meu telefone tocou, era o menino, eram dez da manhã, eu em meio a uma prova de um curso, agora já sem importância, que eu fazia. Disse que seus pés estavam cansados, doloridos, sujos, precisavam de um cuidado e de um carinho. Não perguntou onde eu estava, se fazia algo, apenas informou que chegaria em meia hora num tal endereço, uma casa, mas não disse se sua, de alguém, apenas que eu fosse para lá. “– Professor, não me sinto muito bem, preciso sair”. Fui.

Os deuses estavam aconchegados num tênis velho, imundo, largo. Já nem mais sustentavam aquele menino, deitado sobre uma cama magra, num quarto com a mesma aparência do seu calçado, as pernas para fora, os pés no chão. Estava vestido, camiseta e bermuda, mas suado. Via-se que tinha andado muito, corrido talvez. Ao me ver entrar, falou que precisava ter os pés escaldados. Pedi para vê-los antes, o que me foi permitido. Primeiro conheci aqueles tênis, toquei cada parte, aproximei meu rosto, senti a textura, nada suave, o cheiro, a força de rua e de juventude. Depois os tirei, me vieram eles, os meus amados. Que alegria ao revê-los! Minhas mãos, meu rosto, minha boca que agora ousava tocá-los, que saudades eu tinha, que tesão eles me davam! Preparei a bacia com água quente, mergulhei-os, limpava-os, massageava-os, conhecia-os cada vez mais. Fincava na minha mente cada detalhe daquela pele, de sua aparência, do peso sobre minhas mãos, não poderia mais esquecê-los. Aquele momento se estendeu por toda a manhã, por todo o dia. Cortei-lhe as unhas, massageava-os com freqüência, e quando precisavam descansar, oferecia meu colo, minhas costas, houve até o grande momento em que, assistindo a uma tolice na TV, o menino apoiou seus pés nus sobre meu rosto, ora os movimentando, ora os mantendo parados, mas sempre sobre meus olhos, meu nariz e minha boca. A felicidade pesava-me na cara. Quanto prazer meu Deus, quanto prazer!

Toda semana me era concedida aquela graça. Felizmente, talvez, em horários mais programados, sem espaço mais para imprevistos. Em troca coisas pequenas, até esporádicas: já lavei sua roupa, louça, arrumava o quarto, trazia algum lanche, algum sorvete, ajudava em alguma paquera, convencendo alguma menininha que aquele era um cara legal. O que o menino gostava mesmo, eu via, era da minha disponibilidade, de vê-lo sempre, exigindo tão pouco, da minha paixão por aquela parte dele que ele considerava tão chula. Ele se excitava ao me ver ali no chão pisado. E ele gostava do meu toque. Gostava tanto que às vezes me premiava com alguma graça extra, embora a mim parecesse impossível receber maior prêmio que aqueles pés, principalmente agora que até o gosto deles eu sentia. Sim, eu lambia! Chupava cada dedo, tentava engoli-lo inteiros. Sabor melhor jamais provei.

Mas ele me cedia mais, quando achava que eu merecia. Um dia tocou com suas mãos o meu rosto. Talvez vocês não saibam o que isso significa, mas explico: aquele menino, dono do que havia de mais importante pra mim, dono do que eu amava, curvou-se levemente, enquanto eu ali no chão me deleitava com os seus pés, e me tocou com suas mãos. Ele veio até mim... foi estranho perceber isso. Suas mãos... eram tão belas também. E me foi encorajado que eu as deliciasse igualmente. Eu as cheirei, as senti, as lambi. Fui delas por um breve momento, depois voltei aos meus melhores amantes. Engraçado é que lá, em suas mãos, pude erguer um pouco mais minha cabeça e notei pela primeira vez os olhos do menino. Eles me fitavam, talvez até me admirassem, não sei por quê. É claro que já havia visto os olhos dele, mas nunca os tinha “notado”. Eram... castanhos!

Nesse mesmo dia, ele se masturbou. Sabe, eu não sei que intervenção divina houve, tanta coisa eu vi. Eu lambia aqueles pés enquanto aquele moço se exibia, e tinha prazer. Eu dei prazer àquele menino! Não consigo imaginar algo mais fantástico. E tudo o que ele me mostrava, todo aquele corpo, mesmo que minhas mãos não pudessem tocar além dos pés, era tanta beleza que se revelava, impossível não me envolver. Ele gozou sobre si e pediu que eu o limpasse com uma toalha. Que intimidade ele me proporcionou, que liberdade! Depois me colocou na posição de que eu mais gostava, deitado no chão, com seus pés sobre meu rosto. E pediu que agora eu me masturbasse. Aquilo quase me acabou a vida, tamanho o prazer. Enfim eu unia uma sensação mais física, primária, ao meu gozo mais profundo, mais intelectual. Era demais. Tantos limites foram rompidos, que tive medo. Mas nunca mais aconteceu.

Dias depois, o gozo ainda rondava meu corpo. Havia uma marca que, eu não poderia imaginar, transformaria todo o meu desejo para sempre. E talvez não só o meu. O menino me procurava menos agora. Quando me ligava, dava poucas ordens, apenas estendia as pernas, levantava os pés para que eu os adorasse ou os tratasse conforme necessário. Sempre de bermudas, com aqueles pêlos... Mas o momento era outro. Aqueles pés... os meus amantes... eu comecei a sentir que talvez não me bastassem. Comecei a pensar que eles poderiam ser apenas parte do que eu queria e precisava. Foi então que olhei em direção aos olhos do rapaz. Ele me olhava também. E sabia o que eu queria, era evidente que sabia. Um incômodo inevitável. Ele e eu, ambos nos constrangemos. Eu tive vergonha do meu desejo, tive vergonha de tê-lo visto nu. Tive vergonha de ter me revelado nu. Só que, mais que vergonha, eu sentia vontade que tudo novamente acontecesse. Olhei aqueles olhos, os quais até pouco tempo nem tinha percebido, e olhei aqueles pés, adoráveis pés, símbolo de toda a macheza que me provocava a libido. Aqueles pés e aqueles olhos... parte de um mesmo corpo, mas não por acaso tão distantes.

Era inconcebível a ele a idéia de fazer sexo com um outro homem. E ter se permitido se masturbar na minha frente lhe causou um incômodo, uma angústia que agora limitava seus movimentos, sua liberdade comigo. Cada vez menos nos encontrávamos, cada vez menos tempo me era permitido para amar os seus pés. O menino a cada encontro não mais relaxava a cabeça no sofá, as pernas na cama, agora ele assistia ao meu amor inquieto, apressado. Eu, mesmo ciente de sua mudança, continuava carente de mais do que ele ainda me oferecia. Cego e burro, pedi para vê-lo sem roupa, pedi ainda para tocar de leve todo seu corpo. “– Não gosta mais dos meus pés?”. Respondi que os amava demais, que eram parte inseparável do meu prazer, mas que não saía da minha mente a imagem de tudo o que eu havia visto naquele outro dia. O menino me olhou com olhos de lamento, e me disse que não dava mais, que tínhamos ido muito além do que ele podia, do que ele queria, do que era bom. Mandou que eu não me sentisse culpado, porque não havia culpa, “é que tudo sempre acaba”. Vendo o desespero brotar aqui, ainda propôs uma escolha, que eu ou o visse nu, que o tocasse, quem sabe transássemos, e nunca mais nos víssemos, ou que nada disso nunca acontecesse, e até tentássemos continuar como começamos, eu e os seus pés.

Não consegui responder. Era tanto pensamento que não tive palavra. Ele, categórico, disse que a minha dúvida representava sem erro o nosso fim. Calçou-se, e foi embora. Eu me entreguei ao chão que ele havia pisado. Rolei por horas, com um bicho preso na garganta, e uma doença me crescendo no estômago.

O meu amor, os meus amores, o meu prazer, os meus prazeres, tudo agora sombra, uma lembrança, uma angústia. Aquele menino, aqueles pés, aquele corpo, tudo fincado aqui, a agonia daquela dúvida que eu nunca mais tirei de mim.

Autor: Hardlove

3 comentários:

Unknown disse...

Muito bom, um dos mais belos contos que li

Anônimo disse...

maravilhoso

Unknown disse...

Muito bom mesmo!

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